Roberto Prado colabora com o Folhetim Cultural desde o início de 2011, Devaneios do Ranzinza a partir deste ano todas ás segundas 18 horas e o Chá das 5 uma vez ao mês no sábado. Roberto Prado já publicou dois livros pela (CBJE) Câmara Brasileira de Jovens Escritores, Gringas e Outras Histórias está na segunda edição.
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APÓS O FUNERAL
Então estavam todos reunidos em volta da mesa, sérios, graves, cheios de
um orgulhoso vazio e sem sentido. À mesa copos de licor, o jantar já havia sido
servido e alguns ainda comiam sobremesa, e eu num canto fumava meu cigarrinho,
velho companheiro de desadores.
O silêncio reinava absoluto.
Percebia-se que todos queriam falar, mas ninguém tinha coragem
suficiente para dar a primeira palavra.
O nível de licor da garrafa de cristal baixava...
Acendi o segundo cigarro, que saboreei com certa volúpia provocadora,
sensual e quase obscena, pois eu pressentia a tempestade que se aproximava...
Os silenciosos minutos se arrastavam.
Aqui e ali se ouvia tímidos pigarros, uma ou outra tosse acanhada, as
crianças ainda se empanturravam com os doces da sobremesa, o nível da garrafa
de licor chegou ao fundo.
Quando alguém proferiria a primeira palavra que seria o estopim para a
bomba que acabaria com aquele marasmo?
Quem seria o “gatilho”?
O Gordo, o advogado[1] da
família? Obscenamente obeso, nervoso, diabético, hipertenso, cardiopata com
inclinação para sociopata.
As irmãs abraçavam-se com tanta força e medo que mais pareciam irmãs
siamesas, cochichavam, não tinham coragem de pronunciar uma palavra sequer. O
marido da caçula conseguiu junto à empregada umas garrafas de cerveja que,
mesmo quente[2],
ele bebia sem parar, evitando assim de falar qualquer coisa...
A coisa piorava, eu sorria e sorrindo, acendi o terceiro cigarro, o
câncer de pulmão ainda haveria de compensar todo esse espetáculo que eu
assistia de camarote.
Alguém tossiu mais forte, todos olharam para mim através da doce nuvem
azul de fumaça à minha volta.
Pensei:
- “Começo” está próximo!
Como se nada estivesse acontecendo dei a mais grandiosa bafora de fumaça
fazendo círculos no ar, círculos esses que flutuavam, dançavam, mesclavam-se
uns com os outros, uma verdadeira obra de arte que foi ignorada por todos
naquela sala. Ainda bem que eu sou um grande admirador de minhas obras, sejam
elas quais forem, não preciso desses idiotas como críticos.
Quando Marizete, a empregada por mim para abrir a janela, a família
exigia respirar ar puro, cochichei[3] em
seu ouvido para ela me trazer uma dose do uísque- dezoito anos - do velho que
estava escondido na terceira gaveta à esquerda da escrivaninha do velho lá na
edícula que ele chamava soberbamente de “meu escritório”!.
Aberta a janela pude ver melhor para aquela matilha em volta da mesa
e, para azar deles eles podiam me ver também[4]!
O ar puro não melhorou em nada o clima, os irmãos estavam misturando
cerveja quente com o licor, coisa boa não aconteceria, não aconteceria não,
olhei para o meu relógio e mentalmente comecei uma contagem regressiva...
Quando Marizete entregou-me o copo de uísque – com duas pedras de gelo
de água mineral – juro que senti a eletricidade no ar roçar a minha nuca.
Chacoalhei o copo, as pedras fizeram um delicioso ruído batendo contra as
paredes do copo de cristal da Boêmia, acendi outro cigarro, e virado[5] agora
para a janela, sorvi ruidosamente o primeiro gole. Talvez fosse o efeito do
uísque com os quatro cigarros acesos um no outro, mas juro que vi um relâmpago.
A coisa estava por um fio quando minha mulher com dificuldade conseguiu
descolar sua pele da pele de sua irmã falou, forçando uma simpatia que soaria
falsa até para um marciano que viesse à Terra pela primeira vez:
- Bem, para desanuviar[6] o
clima, conte uma de suas histórias.
E então o “gatilho” foi puxado, o estopim detonou a bomba e contra todas
as “minhas” expectativas, eu causei a confusão toda...
Fora de mim, pus-me a gritar[7]:
- Eu não estou aqui para alegrar a vida de ninguém. Vocês são vazios, tão
cheios de si, tão arrogantes, ambiciosos, tão cheios de seus direitos na hora
de tomar algo de alguém, vocês que dormem com um olho aberto e outro fechado,
tamanho o medo de serem roubados, que passam noites em claros matutando como
tirar algo do próximo, vocês que passam a vida contando migalhas, vocês seus
miseráveis que deixam de viver para não gastar, querem que eu, eu, eu lhes
alegre a noite, os divirta com as histórias da minha vida? Vocês que não
viveram a vida para poderem economizar querem eu os faça rir com as minhas
aventuras, desventuras, com viagens para lugares errados, com as piadas me
contaram em bares que frequentei. Vocês querem literalmente se divertir às minhas
custas? Mas como são miseráveis meu Deus! – nesse momento dei o grito
definitivo:
- Marizete! Mais um copo de dezoito anos, sem gelo e enche o copo!
Bebi de uma vez só e acendi outro cigarro. O silêncio havia sido
quebrado, enfim, mas o burburinho prometia que eu sentiria falta do silêncio
logo, logo...
Antes que avançassem sobre mim, tentei a minha derradeira cartada,
apostando no perfil daquela cambada, falei:
- Bom um preço razoável posso lhes contar os melhores momentos de minha
vida, mas vocês terão de pagar pelo espetáculo, e tenho que admitir, gritei
para a Marizete:
- Marizete, pode passar a sacolinha que o show vai começar! – Após esse
descuido tudo ficou confuso...
Mas segundo Marizete enquanto os cunhados me surravam – e ela gritava –
eu sorria o sorriso mais debochado que já tinha visto!
[2] Ele adquiriu da família da mulher o hábito de tomar cerveja com
gelo, por pura economia de eletricidade. Entendam como queiram!
[3] Mentira, não cochichei, falei baixo, mas alto suficiente para que
todos me ouvissem! Não valho nada, eu sei, mas já me conformei com isso e durmo
bem à noite.
[6] O que ela quis dizer com “desanuviar”, ainda estariam implicando
com a fumaça do meu cigarro mesmo com as janelas abertas? Ou estarei, por fim,
enfim ficando louco?
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